Jesus subiu ao monte para falar com seus discípulos, e eles entenderam, porque, tão logo, ele se assentasse, como era costume dos mestres em Israel quando ensinavam, eles se aproximaram dele. Sabiam que Jesus não falava à multidão do alto do monte, mas, da base da praia e, portanto, se aproximaram dele para ouvir o que tinha a dizer, exclusivamente, aos discípulos. Jesus, olhando para a multidão de filhos de Abraão, ali reunida, que aguardava pelo Messias, com grande expectativa, começou falar do quadro que aquela multidão sugeria.
Primeiro citou os pobres, os despossuídos, e havia muitos ali, porque era uma época de opressão e os romanos possuíam tudo e a todos que quisessem; e os líderes de Israel apoiavam a opressão, então, os pobres eram explorados de todas as formas. Os artesãos, dos quais Jesus fazia parte, e os pescadores eram extorquidos por impostos desmedidos, porque Herodes, na tentativa de angariar o favor de Tibério César, com o intuito de ser, por este, declarado único governante de Israel, tratava de alimentar os cofres romanos. E, eram, também, pobres de espírito, porque, os líderes, que usurparam a fé judaica, sonegavam-lhes a palavra da libertação, sugerindo-lhes, na prática, a subserviência à prática religiosa romana, que lhes reconhecia o direito ao poder, e poder absoluto.
Disse, então, Jesus, que os pobres eram felizes, porque deles era o Reino de Deus. Ou seja, que o governo de Deus seria exercido em favor deles, o governo de Deus, com a sua Justiça, imporia uma nova lógica naquele estado de coisas, uma lógica de libertação e de restituição, por isso eles eram felizes. Jesus estava deixando claro que o Reino de Deus, o governo de Deus, já estava na terra, e faria justiça aos explorados.
Continuou Jesus, agora, falando dos que choram, dizendo que eles eram felizes porque seriam consolados; e havia muito pranto, porque a opressão era insuportável; basta pensar que os jovens eram arrancados de suas casas e forçados a alistar-se como soldados no exército de Roma; portanto, os motivos de choro eram inúmeros; as mulheres eram violadas e tratadas como lixo. Eram tempos de muito clamor! Mas, Jesus disse que a felicidade era chegada a eles, porque seriam consolados: seus filhos não seriam mais forçados a nada que não o quisessem, nas normas do direito, e suas mulheres seriam respeitadas e honradas.
Jesus, então, passou a falar sobre os mansos, isto é, aqueles que foram, na prática, destituídos de seus direitos, em outras palavras, aqueles cujos direitos não foram respeitados. Jesus mencionava, especificamente, o direito à terra, que vinha sendo solapado desde o momento em que a elite de Israel decidiu que não cumpriria lei do jubileu, isto é, que não libertaria os escravos, não perdoaria as dívidas, e não faria a reforma agrária ordenada na lei do jubileu, que, a cada 50 anos, renovava a sociedade, pela prática do perdão, da libertação e da reforma agrária. Jesus, contudo, disse que eles eram felizes, pois, com a chegada do governo de Deus, seriam libertos da escravidão, suas dívidas seriam perdoadas, e a terra lhes seria devolvida, haveria a retomada da lógica da exigibilidade do direito, explícita na lei do Jubileu.
Num ambiente como aquele sobravam pessoas com fome e sede de justiça, porque tudo o que não havia era justiça; todos os direitos tinham sido solapados; a lei de Moisés não valia mais; os próprios líderes de Israel já não se pautavam pela sua lei, a não ser quando queriam condenar os que lhe eram contrários; os fariseus, na qualidade de pretensos mestres, constrangiam os fiéis a lhes sustentarem subservientemente; os saduceus, a classe dos sacerdotes, transformaram o acesso ao templo num lucrativo negócio, haja vista, o uso do átrio dos gentios para a prática de negócios de câmbio e venda de animais, e de utensílios para o culto, sob o auspício da família sacerdotal, comandada por Anás. O grito por justiça era incessante, mas, Jesus disse que estes eram felizes, porque o seu clamor fora ouvido e seriam fartos em sua sede e fome por justiça.
E havia os misericordiosos, aqueles que, em meio à penúria, e a fome se lembravam de ser solidários, de partilhar, de repartir, de socorrer ao mais necessitados, de dividir o pouco, na convicção de que todos tinham direito ao mínimo que fosse. Jesus diz que eles eram felizes porque Deus os trataria com a mesma misericórdia, se lembraria deles na sua penúria, na sua angústia, mas, principalmente, na sua solidariedade. O governo de Deus trataria com justiça e honra aqueles que, no estado de injustiça, não permitiram que a escassez os fizesse egoístas e insensíveis, a ponto de não se virem como o próximo do mais carente. Nessa categoria estavam contemplados os que, tendo sido, por decorrência histórica, parte da elite, romperam com a mesma, tomando o partido da justiça, do pobre e do necessitado. Na nova ordem os seus dons seriam bem-vindos, ainda que o "status" viesse a ser, naturalmente, alterado, pois, a nova ordem primaria por fraternidade e comunitariedade, numa "hierarquia" horizontal, como viveu a Igreja em Atos dos Apóstolos.
Seriam felizes, também, os que oraram pedindo por um milagre na história, os que sempre souberam que Deus havia feito uma opção pelos pobres, pelos necessitados, porque assim primava a sua lei, desde sempre. Aqueles que nunca entenderam que a opressão e a injustiça fossem resultado da vontade de Deus; aqueles que sempre souberam que Deus não promove o mal, e pelo mal não é tentado, e que a maldade é fruto da desobediência a Deus, nunca uma concessão divina, mantendo, assim, o coração limpo. Estes veriam as suas orações ouvidas na história, embora, a sua esperança estivesse, também, para além da história, alcançando o transcendente, o que, também, seria satisfeito.
A chegada do governo de Deus, com sua justiça, significava, também, a consecução da felicidade desejada pelos que pautaram a sua conduta pela busca do Shalom, a paz, que sintetiza a vontade de Deus, e que implica, necessariamente, na satisfação, com qualidade, das necessidades básicas de todo ser humano, incluindo a espiritualidade; e que suscita a consciência do direito, pois, o Shalom de Deus se cumpre, necessária e exclusivamente, na coletividade, não há Shalom onde haja qualquer tipo de exclusão.
Agora, Jesus se lembra dos lutadores, os que, em nome da justiça, se rebelaram, se opuseram, às custas da própria vida. É nessa categoria que Jesus coloca os seus próprios discípulos e os profetas que os antecederam. São lutadores pela justiça, e, como tal, perseguidos, caluniados e injuriados. Mas, a exemplo dos profetas têm grande reconhecimento nos céus, isto é, são vistos e honrados como os agentes de Deus na história, por isso, a eles, o júbilo. Pois, assim, como os profetas, na sua luta e militância, tornaram possível a vinda do governo de Deus com sua justiça, pela vinda do Messias, os lutadores pela justiça veriam o efeito da presença do governo de Deus na história conhecida, e na que virá no novo céu e na nova terra.
A essa altura os discípulos deviam estar a perguntar do que Jesus estava falando, e onde eles entravam nisso. Jesus, de fato, falava de uma profecia de um desejo, de seu papel e de seu amor como Messias, entretanto, ele não estaria presencialmente na vanguarda desta mudança, porque ele veio para consumar o sacrifício. Logo, ele olhava para uma multidão que queria saciar, mas, que não conseguiria, naquele momento, porque a sua missão primeira era vencer a morte. Os discípulos cumpririam o desejo de seu amor e imprimiriam na história a sua profecia. Seria através deles que as bem-aventuranças ganhariam espaço e lugar na realidade humana, antes mesmo do novo céu e da nova terra.
Os discípulos seriam os protagonistas naturais da profecia e do desejo do Cristo, por causa de seu caráter, de seu modo de vida e de sua atuação na história. Ao falar sobre isto, o Cristo anunciava a transformação que sua vitória sobre a morte propiciaria a todos os seus discípulos: um novo caráter e uma novo poder e forma de atuar na sociedade humana. O caráter, referido na figura do sal que não pode perder o sabor, seria incorruptível, por isso toda a agressão aos discípulos teria de partir da mentira e da calúnia. O novo poder e forma de atuar na história, referida na revelação de serem luz do mundo, cuja luminosidade seria demonstrada pelas boas obras, seria o poder e a influência que exerceriam na humanidade, a ponto de trazer à realidade o padrão de justiça, que é o que Jesus chama de felicidade, descrito nas bem-aventuranças.
Portanto, as boas obras, possibilitadas pelo novo poder, que levariam as pessoas a glorificarem o Pai Nosso, seriam as que propiciariam a mudança na sociedade humana em direção à justiça do governo de Deus, descrita na razão do porque gente tão espoliada era considerada como bem-aventurada pelo Cristo.
Cristo anunciava, portanto, que a sua vitória traria uma vida nova aos seus discípulos. Ele se tornariam iluminadores, a partir da luz que receberiam em si. Cristo faria de seu discípulos seres luminosos, cuja iluminação produziria justiça, uma nova realidade onde todos desfrutam de tudo que Deus é e de tudo o que Deus doa. E isso se daria a partir da posição que ocupassem na sociedade, isto é, cada discípulo de Cristo se veria como um agente de mudança, onde quer que viesse a estar, para que a justiça vingasse em todos os sentidos, em todos os lugares e relacionamentos.
Esta colocação do Cristo, declara que a atividade do seus discípulos, além de contemplar a proclamação por meio da pregação, contempla a ação, intencionalmente, política, de formação e de transformação da sociedade. Embora a atividade dos discípulos não tivesse como finalidade a implantação definitiva do governo de Deus na terra, mas, sim, a demonstração de que este governo já estava presente, ainda que não de forma plena, o que só se dará no novo céu e nova terra, seria uma atividade iluminadora intensa, o suficiente para gerar, ainda que sem a plenitude do novo céu, a justiça exposta nas bem-aventuranças.
Estava claro, então, o que caracterizaria a ação dos discípulos na história: as suas boas obras, fruto, também, do Espírito do Cristo: produziriam libertação ao despossuído; consolo aos que choram; devolução da liberdade aos escravos, e da terra aos camponeses; fartura de justiça aos famintos dela; reconhecimento aos que socorreram aos necessitados; resposta de Deus à oração dos que esperam por Deus na história; reconhecimento aos que promoveram a paz de Deus entre os homens; reconhecimento e acolhimento aos lutadores pela justiça.