Ariovaldo Ramos
Desde que ouvi falar de missão
integral em 2007, enquanto fazia uma escola da JOCUM, fiquei interessado e
comecei a pesquisar sobre o tema. Adquiri alguns livros, baixei artigos da
internet, assinei Ultimato, enfim,
quis saber quem falava sobre missão integral e o que falavam sobre missão
integral. Em meio a muitas leituras e questionamentos, não sei se estou sendo
tolo, mas a minha pergunta é: a teologia da missão integral dialoga com o
marxismo ou mesmo se apropria de alguns pressupostos marxistas? Se sim, como
articular cosmovisões contrárias uma da outra?
Filipe Reis, Parintins, AM
Bem, Filipe, nós vivemos num mundo
profundamente influenciado pelo marxismo. Então, é impossível dialogar com o
mundo sem dialogar com o marxismo num nível ou noutro. O marxismo mudou a face
do Ocidente por, pelo menos, setenta anos. Estabeleceu-se como fato histórico,
vimos surgirem blocos socialistas no mundo todo. E a grita do marxismo era a de
que o capitalismo estava na contramão do que produziria felicidade humana, e
que era preciso chegar a uma nova fase na história da humanidade a que eles
chamaram de comunismo, que era, segundo Marx, o sucedâneo natural do
capitalismo. As experiências revolucionárias marxistas não comprovaram a tese, porque as grandes nações, que se tornaram socialistas, do ponto de vista marxista-leninista,
deram ou tentaram dar um salto do feudalismo para o comunismo, já que nem uma
delas havia passado pelo capitalismo propriamente dito. Mas estão aí, fizeram
história, milhares de escritos, de reflexão por todo o mundo, em todas as
línguas. Então, é impossível falar ao mundo sem dialogar com os que também
tentam interpretar e até mesmo transformar o mundo. Neste sentido, a Teologia da
Missão Integral dialoga com o marxismo assim como dialoga com A riqueza das nações de Adam Smith, com
o capitalismo, porque nós estamos tentando responder a grande pergunta humana
que é “qual é o sentido da vida, para o que é que nós existimos, de onde
viemos, para onde vamos e como devemos viver?”. Então, nós dialogamos com todo
mundo, inclusive com outras confissões de fé. Nós estamos lutando pela
humanidade como todo mundo.
Agora, se o que você está
perguntando é se a Teologia da Missão Integral lança mão do referencial teórico
marxista, a resposta é NÃO. A TMI considera
as análises marxistas, entende a validade de muitas de suas análises, mas não lança mão do referencial teórico do marxismo, porque a Missão Integral se estriba na recuperação de
dois conceitos: 1- O conceito de justiça no profetismo hebraico. No profetismo hebreu você tem a
noção de justiça, ela vai aparecer nos grandes profetas que vão dizer, como
Amós (5.24), que a justiça deve correr como um rio que nunca seca. Todos os profetas
hebreus levantaram a questão da justiça e são eles que introduzem esta noção da
justiça como um critério transcendente: justiça não é mais uma relação de poder
entre fracos e fortes, entre vencedores e vencidos; justiça é uma demanda
divina, uma demanda de Deus; ele exige justiça, Deus exige que os pobres sejam
tratados com decência, exige, de fato, que não haja pobreza, que haja libertação
econômica, social e política (essa noção aparece no Jubileu e no Ano da
Remissão – Lv 25; Dt 15.1-10). A justiça nasce no coração de Deus e é
introduzida na história humana pelos profetas hebreus, são eles que trazem a
noção de justiça para a história e trazem-na como um dado transcendente, e não como uma conclusão imanente, ou seja, não foram
os seres humanos pensando sobre si, sobre a história, sobre a sociedade que
chegaram à noção de igualdade, de justiça, de que não pode haver pobre; pura e
simplesmente. Foram os profetas hebreus que trouxeram este elemento para a
história humana, esta visão de que há uma demanda da parte de Deus por
igualdade entre os homens, por dignidade para todos os homens, pelo fim da
pobreza, pelo respeito ao diferente, pelo abrigo ao estrangeiro, pela noção de
direito humano. E isso vem diretamente de Deus, está espalhado por todo o
Antigo Testamento, desde a lei de Moisés que é reforçada pelo profetismo
hebraico que, na verdade, é um trabalho de recuperação do espírito da lei de
Moisés, que clama por justiça. Este é o primeiro referencial da Missão Integral.
Você verá isso nos escritos de René Padilla, nos escritos de Samuel Escobar, de
Orlando Costas, de Pedro Araña e muitos outros.
2- O outro referencial da Teologia
da Missão Integral é a recuperação da noção do Reino de Deus e sua justiça, a
ideia de que o Reino de Deus é um outro sistema que se opõe ao sistema vigente,
que se opõe ao sistema capitalista e ao sistema soviético. É um outro sistema
que vem não para estar ao lado dos sistemas em pauta, mas para substituí-los,
para erradicá-los. Isso aparece no profeta Daniel que, quando responde ao sonho
de Nabucodonosor, fala sobre a pedra que é lançada por mãos não humanas contra
a estátua. A estátua, no sonho de Nabucodonosor, sintetiza todas as tentativas
humanas de resolver o problema humano sem considerar a hipótese de Deus ou sem
considerar a revelação de Deus, tudo o que os homens tentaram em todos os
níveis: o feudalismo, o capitalismo, o comunismo; está tudo lá na estátua. E a
pedra é o Reino de Deus, que vem e derruba a estátua, triturando-a, desfazendo todos
os componentes da estátua até transformá-la em pó, pó que é varrido pelo vento
de modo que da estátua não fica nem lembrança, e a pedra cresce, alarga-se e
toma toda a terra, ou seja, uma nova realidade assume o controle da história e
essa nova realidade é o Reino de Deus.
A Teologia da Missão Integral vai
recuperar essa noção de Reino de Deus que aparece com força total no Novo
Testamento, a partir da pregação de João Batista, e que é referendada e
ratificada pela pregação de Jesus de Nazaré: arrependei-vos porque é chegado o
Reino dos Céus. Nos quatro Evangelhos você
verá que os fariseus, os saduceus, os mestres da lei, que viviam
inquirindo Jesus, fizeram perguntas, de toda ordem, de todo tipo, mas nenhum
deles perguntou o que era o Reino dos céus. Todos eles sabiam do que João
e Jesus estavam falando, eles sabiam o que era o Reino dos Céus: a chegada da
realidade definitiva, a realidade que iria se impor á história, que iria
conquistar a história, que iria se estabelecer na história e iria dar o tom à história.
É isso que a Teologia da Missão Integral recupera: a noção do Reino de
Deus como um sistema que engloba tudo o que afeta o homem e tudo o que o homem
afeta. Engloba, portanto as questões social, política, econômica, ética, a
moral, educacional, do trabalho, do direito, porque tudo isso afeta o homem e é
afetado pelo homem, por isso é um sistema só, e esse sistema precisa ter um
novo princípio vetor que segundo as Escrituras é o Reino de Deus. Assim, o Reino
de Deus é um novo sistema onde só a vontade de Deus é feita, e é um sistema
econômico, político, social, moral, ético, educacional, está tudo contido no Reino
de Deus.
A Teologia da Missão Integral é uma
proposta Ortodoxa, que amplia a missiologia da Igreja, portanto uma proposta de Evangelização, de proclamação da necessidade da conversão ao Cristo, na sua forma mais radical, mas não tem a pretensão
de que seja a Igreja que venha a implantar o Reino de Deus, ela tem a intenção
de encorajar a Igreja a sinalizar que o Reino de Deus já está presente, e
trabalha para que a Igreja seja uma mostra do mundo vindouro “as primícias” do
Reino de Deus, como Tiago (Tg1.18) nos advertiu. Sendo assim, a partir da Igreja os
paradigmas do Reino dos Céus devem ser vividos, e aí a Igreja, como uma das
protagonistas da história, precisa ser proativa e sinalizar a presença do Reino
a partir de todas as suas possibilidades, e influenciar o mundo com os padrões do
Reino de tal maneira que, guardadas as devidas proporções, o mundo se torne o
mais parecido possível com o Reino vindouro. E isso vai significar a chegada da
paz, da igualdade, do direito, da responsabilidade moral, de uma sociedade sem
classes, de uma sociedade justa, de uma sociedade igualitária, solidária, isso
é a pregação da Teologia da Missão Integral.
Você pode dizer que aqui ou ali nós
esbarraremos em conceitos marxistas, mas eu preciso lembrar a você de que Marx
veio depois da Igreja Primitiva, veio depois de Jesus, o Cristo. Não somos nós
que estamos buscando conceitos em Marx, foi Marx que buscou os conceitos dele
na tradição judaico-cristã, e tentou criar um projeto de uma vida semelhante ao que a Igreja primitiva viveu. Porém o filósofo quis atingir essa realidade sem
a necessidade da hipótese de Deus, e por métodos que a Ortodoxia Cristã não
apoia.
Nós não trabalhamos com o referencial marxista porque o nosso
referencial é anterior. Embora aqui e ali, nós possamos ter intersecções com
os marxistas, se isso acontecer, será porque, como disse o Karl Jaspers,
nenhuma filosofia do Ocidente foi desenvolvida sem que a Bíblia fosse o pano de
fundo. E nem Karl Marx escapou disso. (baseado em artigo publicado na Revista Ultimato)